A delegação brasileira, formada por representantes da Contee, da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e da Federação de Sindicatos de Professores e Professoras de Instituição Federais de Ensino Superior e de Ensino Básico Técnico e Tecnológico (Proifes-Federação), foi a que encerrou a apresentação das realidades dos países durante o encontro “Resposta global frente à privatização e comércio educativo”. A atividade, promovida pela Internacional da Educação para a América Latina (Ieal), terminou ontem (22) na Costa Rica e, durante três dias de debate, discutiu sobre o aparecimento cada vez mais intenso de novas estratégias de lucro privado com a educação pública e a necessidade de combatê-los. E um dos instrumentos é a campanha internacional “Educar, não lucrar”, cujo objetivo é combater as várias formas de privatização da educação.
Representando a Contee, a coordenadora da Secretaria de Assuntos Educacionais da Confederação, Adércia Bezerra Hostin dos Santos, apresentou dados sobre o crescimento do ensino superior privado no Brasil. Segundo ela, de 2005 a 2015, a taxa de matrículas no setor saiu de 3,2 milhões para 4,8 milhões, sendo que o faturamento, em 2016, chegou a R$ 59,4 bilhões. Dos principais grupos mercantis entre as IES privadas, o grupo Kroton, maior do mundo, detém sozinho, segundo dados de 2015, quase 1 milhão de matrículas e receita líquida de R$ 5,2 milhões. Seu valor de mercado, estimado em R$ 5,8 bilhões, é mais do que o dobro do segundo gigante mundial na área de ensino, o grupo chinês New Oriental, que vale R$ 2,8 bilhões.
“E, agora, os novos movimentos do mercado apontam que os processos de concentração devem avançar sobre as universidades comunitárias e a expansão da oferta do ensino a distância”, alertou Adércia. De acordo com os dados apresentados pela diretora da Contee, as matrículas em EaD saltaram de 4,2% do total de matrículas em ensino superior em 2006 para para 17,4% em 2015. Hoje, de 1,4 milhão de matrículas, 1,3 milhão estão no ensino privado. Segundo a coordenadora da Secretaria de Assuntos Educacionais, o modelo de operação das principais IES mercantis na EaD revela economia de escala através de padronizações; gestão profissional com maior controle de custos; menor mensalidade a partir de redução de custos; políticas mais agressivas de comunicação e marketing; maior potencial para investimentos. Tudo isso aliado a pouquíssima — ou nenhuma — preocupação com a qualidade da formação.
“Fiz toda a contextualização desse debate sobre os processo de privatização nas várias esferas e dos alertas que a Contee foi dando ao longo desses mais de 25 anos de luta contra a mercantilização do ensino”, relatou Adércia. Para isso, a diretora apresentou às delegações internacionais toda a produção feita pela Confederação, na Revista Conteúdo, no Portal da Contee, na campanha “Educação não é mercadoria” etc. no sentido de combater a mercantilização e a financeirização no ensino no Brasil, luta que, para a entidade, não data de agora. “A Contee trata das questões de mercantilização desde sempre”, enfatizou.
Toda essa problemática encontra-se também combinada a outros fatores que afetam os trabalhadores em educação na atual conjuntura brasileira, como Adércia fez questão de salientar. “Um exemplo é a reforma trabalhista, que permite uma exacerbação da flexibilização das leis de trabalho e inúmeras perdas de direito. “A identidade do professor tem se diluído dentro de todas essas questões”, refletiu, ressaltando que a Contee lançará na próxima semana, durante o XIX Conselho Sindical (Consind), uma campanha nacional contra a desprofissionalização do magistério.
A conjuntura pós-golpe
Além da diretora da Contee, a delegação brasileira foi formada por Marta Vanelli e Gilmar Soares Ferreira, da CNTE, e Gil Vicente e Luciene Fernandes, do Proifes. Conforme Gil Vicente, as três entidades apresentaram cada uma sua linha de trabalho e as propostas de ação que têm, mas dentro de uma perspectiva de atuação conjunta, também inserida na campanha internacional “Educar, não lucrar”.
Em sua apresentação, o Proifes fez uma contextualização do quadro nacional, comparando os avanços do período anterior, com os governos Lula e Dilma, e os retrocessos atuais. Foi apontado como avanço, por exemplo, o próprio Plano Nacional de Educação (PNE) e a conquista dos 10% do Produto Interno Bruto (PIB) para o setor, apesar das dificuldades e das lacunas, devido aos espaços deixados pelo PNE para envio de recursos para o setor privado, o que acabou acontecendo com o crescimento alarmante do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) durante o governo Dilma.
“A gente fez esse contraponto, mostrando que foi um governo que avançou bastante, mas que teve suas limitações sérias”, ponderou Gil Vicente. “E, depois de contextualizar essa situação anterior, passamos a contar como isso conseguiu ficar infinitamente pior, com a entrada do governo Temer, que configurou, claro, um golpe político, no sentido de que tudo aquilo em que a gente votou, que era um aumento de recursos, não só pra educação, mas para a área de saúde, para as políticas públicas de uma forma geral, esse foi revertido. O que o governo vem implementando é exatamente o oposto disso”, observou.
Um dos principais pontos abordados, segundo o diretor do Proifes, foi a Emenda Constitucional 95, que congelou os investimentos públicos por 20 anos. “Explicamos essa emenda aqui, porque as pessoas não sabem exatamente o que aconteceu no Brasil. Além de um retrocesso imenso, de retirada de recursos de todas as áreas públicas, particularmente educação, na esfera superior e em todas as esferas, com a reforma do ensino médio etc., é um impedimento de que a gente tenha qualquer tipo de governo progressista, qualquer tipo de avanço, nos próximos 20 anos”, declarou.
“Isso nós mostramos aqui, que vai haver uma redução dramática nos próximos dez anos de pelo menos 20% dos investimentos em educação. Talvez mais, porque a reforma da Previdência ainda quer dividir um pouco a miséria, na medida em que garante o pagamento da dívida pública brasileira ao mesmo tempo em que retira das áreas sociais aquilo que seria fundamental para que o povo tivesse o mínimo de serviços públicos de qualidade. Então esse retrocesso, essa redução, será no mínimo de 20%, talvez de 30%. E as consequências disso para a educação vão ser absolutamente dramáticas”, afirmou. “Mencionamos aqui a reforma do ensino médio. No caso dela, por exemplo, as consequências são muito simples: o governo atual já está propondo um endividamento do Estado diante do Banco Mundial, diante do Bird [Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento], em que eles vão pôr esse dinheiro aqui, mas exigindo, como contrapartida, poder falar sobre currículo, pagar assessorias que interessam ao setor privado… É um aporte muito forte de dinheiro que, na verdade, afeta, inclusive, a soberania nacional.”
Na esfera do ensino público superior federal, que é a área de representação do Proifes, Gil Vicente fez um alerta de que as consequências também serão imensas, porque já para 2018 há previsão de corte, nas universidades, da ordem de 32% e ainda maior nos institutos federais. “Significa isso que, no médio prazo, de um ano a dois anos, a gente vai ter, possivelmente, os investimentos nas universidades e nos institutos federais próximos de zero”, disse. “Apresentamos aqui, então, que é absolutamente fundamental para nós exigir que a Emenda Constitucional seja revogada. Essa é uma das nossas principais lutas junto com as outras que a gente mencionou: contra a reforma do ensino médio, contra a forma como o governo está encaminhando a Base Nacional Comum Curricular etc. E a luta continua, claro, de todas as entidades juntas nesse contexto mundial de retrocesso, em especial na América Latina.”
Os efeitos sobre a educação básica
O diretor da CNTE, Gilmar Soares Ferreira, também fez uma contextualização dos efeitos do golpe no âmbito da educação básica. “Mesmo nos governos democráticos e populares de Lula e Dilma, a disputa pelos recursos públicos da educação básica foi intensa”, apontou. “A falta de um Sistema Nacional de Educação com responsabilidades concretas para cada ente, principalmente o ente federal, contribui para a desresponsabilização da União e dos estados pelo atendimento da demanda de matrículas, sobrecarregando os municípios e facilitando a terceirização e a privatização do ensino.”
Além disso, ele ressaltou a tentativa de desqualificar a escola pública, o que abre caminho para a privatização. “O rendimento dos alunos estão passando a ser aferidos por testes padronizados nacionais e internacionais que acabam por influir na oferta, desresponsabilizando o Estado em função da ‘má qualidade’ da educação pública ofertada.” Há ainda o fenômeno do atendimento através de tecnologias, com introdução das tele-aulas, que “promovem a quebra de um sistema educativo de qualidade socialmente referenciada”, levando a consequências como fechamento de escolas, diminuição do número de professores e funcionários, superlotação das salas de aulas e favorecimento ao lucro dos empresários.
Isso se soma às consequências diretas da aprovação da EC 95 e da lei que escancara a terceirização para todas as atividades. Segundo o diretor da CNTE, nas redes estaduais tem havido: convênio com a ONG Ensina Brasil (Teacher For All), com contratação de profissional sem licenciatura e contratação de estagiário (estágio remunerado) para atuar como professor “inovador”; convênio com emissoras de TV (Fundação Roberto Marinho) para reprodução de tele-aulas; convênio com fundações de bancos privados para formação continuada de professores e acompanhamento da frequência escolar no ensino médio; terceirização das atividades-meios (alimentação, infraestrutura, segurança e administração escolar); contratação de pessoal por meio de ONGs; militarização de escolas; escolas em parceria com cooperativas que já cobram mensalidades dos estudantes; terceirização do ensino médio profissionalizante.
Por sua vez, de acordo com Gilmar, as redes municipais têm sofrido com: contratação de empresas para realizar serviços de apoio escolar (alimentação, administração, segurança); contratação de estagiários recebendo meio salário mínimo; terceirização do transporte escolar (deixando de usar os ônibus adquiridos pelo governo federal); contratação de professores para prestarem serviço nas escolas como microempreendedores (em um único CNPJ pode-se contratar até cinco profissionais); contratação de auxiliar de creche por meio de contrato de prestação de serviços com adolescentes, estudantes do ensino médio, denominado “primeiro emprego” (com remuneração de meio salário mínimo – como bolsistas); contratação de métodos apostilados (como o Positivo); terceirização da formação continuada dos professores; ataque orquestrado pelos entes federal, estaduais e municipais aos Planos de Carreiras Municipais e aos efeitos da lei do Piso Salarial Nacional dos Professores; impedimento aos funcionários de escola de se profissionalizar e constituir uma carreira; impedir da valorização salarial de acordo com evolução na carreira.
Plano de trabalho
Diante de todo esse cenário, Contee, Proifes e CNTE apresentaram, no encontro da Ieal, um plano de trabalho conjunto para enfrentar a privatização e a mercantilização da educação pública no Brasil. As estratégias incluem desde a criação de um observatório sobre o PNE, com ênfase no acompanhamento de sua execução e, especificamente, no que diz respeito a utilização de lacunas na legislação para avanço na privatização até levar uma campanha em defesa e promoção da educação pública frente às políticas de mercantilização da educação para dentro Conferência Nacional Popular de Educação (Conape). Só conjuntamente será possível fortalecer essa luta global em defesa da educação pública, gratuita, democrática, inclusiva e de qualidade socialmente referenciada. Educação não é mercadoria!