O deputado federal Rogério Marinho (PSDB/RN), relator do Projeto de Lei (PL) N. 6787/2016, de iniciativa do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que trata da impropriamente intitulada reforma trabalhista, ao dia 22 de abril corrente, apresentou o seu relatório, com mais cem páginas, não só acolhendo o seu nefasto conteúdo, bem como acrescentando-lhe muitos outros, como se demonstrará a seguir.
O referido relatório promove alterações em 48 Arts. da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), agrega-lhe 46, revoga-lhe 7 e 12 §§, tudo em nome das fantasmagóricas “modernização das relações trabalhistas, com valorização das negociações coletivas”, e “segurança jurídica, nas relações de trabalho”.
Quem se der ao trabalho de analisar o conteúdo do realçado relatório e, sobretudo, de cotejá-lo com os fundamentos, princípios e garantias constitucionais, forçosamente concluirá que ele dá razão ao Barão de La Rochefoucauld, para quem a hiprocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude; pois que, antes de tudo, subverte a ordem da hierarquia das normas, adotada pelo constitucionalismo brasileiro, submetendo a Constituição Federal (CF) à CLT, com a redação que lhe dá.
Reescreve a CLT, mudando radicalmente o seu arcabouço jurídico, fazendo-a, com isso, passar de base mínima de defesa de direitos dos trabalhadores para instrumento maior de proteção do capital, exatamente, contra aqueles; esvazia o conteúdo protetivo da Justiça do Trabalho, transformando-a em rígido aplicador de leis — sem direito à interpretação — que só beneficiam ao capital.
Para subjugar a Justiça do Trabalho aos ditames de tais leis, proíbe-a de dar concretude ao Art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC), que assim dispõe: “O juiz, ao aplicar a lei, atenderá aos fins sociais aos quais ela se destina e atenderá às exigências do bem comum”.
O § 2º do Art. 8º da CLT — com a redação data pelo comentado relatório —, estabelece que as súmulas, orientações jurisprudenciais e precedentes normativos da Justiça do Trabalho “não poderão restringir direitos legalmente previstos nem criar obrigações que não estejam previstas em lei”.
Vale registrar que, apesar desse acentuado desapreço pela jurisprudência do TST, o relatório sob comentários converteu em lei algumas de suas súmulas, que são notoriamente prejudiciais aos trabalhadores, como a N. 294, que trata da prescrição de créditos trabalhistas. O seu conteúdo é tão nocivo aos trabalhadores que foi convertido, em seu inteiro teor, no § 4º do Art. 11 da CLT.
O mesmo tratamento não mereceram as súmulas benéficas aos trabalhadores, como a N. 277, que assegura a ultratividade da norma, que foi inteiramente repudiada pelo § 3º do Art. 614 da CLT; não podendo sequer ser objeto de negociação entre sindicatos profissionais e patronais. A isso, chamam de fortalecimento das negociações coletivas.
O mesmo destino teve a Súmula N. 114 do TST, que não admite a prescrição intercorrente (no curso da ação). O relatório cria o Art. 11-A, para estabelecê-la, formalmente, podendo a Justiça decretá-la, de oficio (iniciativa própria), em qualquer grau de jurisdição.
Aqui, cabe a velha metáfora do político mineiro José Maria Alckmin, secretário de Finanças de Juscelino Kubitschek no governo de Minas Gerais e vice-presidente da República biônico de 1964 a 1967, que afirmava: “conta velha ninguém paga; e conta nova, deixa-se envelhecer”.
Já o § 3º desse Art. 8º determina que a Justiça do Trabalho, ao examinar convenções e acordos coletivos de trabalho, atenha-se às suas formalidades, sendo-lhe vedado analisar o seu conteúdo. Importa dizer: por mais nocivo aos trabalhadores que estes instrumentos sejam, não poderão ser anulados.
Frise-se que nem os atos institucionais do regime militar, de tristíssima memória, ousaram tanto no tocante ao esvaziamento da Justiça do Trabalho.
Ao contrário do que apregoa quanto ao fortalecimento da negociação coletiva — a chamada autonomia privada —, o malfadado relatório esvazia as funções dos sindicatos, tornando-os meros homologadores de instrumentos individuais e coletivos, impostos pelos empregadores aos seus empregados, rasgando impiedosamente o Art. 8º, inciso III, da CF, que preconiza: “ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos e individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas”.
A título de ilustração, cita-se o que dispõe o Art. 507-B: “É facultado a empregados e empregadores, na vigência ou não do contrato de emprego, firmar o termo de quitação anual de obrigações trabalhistas, perante o sindicato dos empregados da categoria”.
Esse Art. representará, sem nenhuma dúvida, o paraíso para as empresas, que, com a faculdade que ele lhes concede, jamais terão passivo trabalhistas, bastando, para tanto, anualmente, impor aos seus empregados a quitação de seus direitos; quem não a aceitar, não terá emprego. É a isso que o relator e os seus confrades chamam de segurança jurídica.
Nem mesmo a assistência às rescisões de contrato de trabalho (homologação de rescisão) de empregado com mais de um de trabalho na empresa, conferida pelo Art. 477, § 1º, da CLT, será prestada pelos sindicatos; a assinatura das rescisões de contrato será feita na própria empresa, sem nenhuma assistência.
O relatório em questão prioriza o famigerado acordo individual, ou seja, aquele que é ditado pela empresa aos seus empregados, sob pena de demissão sumária; a rigor, todos os direitos poderão ser “transacionados” por esse instrumento: jornada de trabalho, inclusive a de 12×36; banco de horas; fracionamento das férias; renúncia a direitos; quitação de direitos sem contraprestação financeira etc.
Para facilitar a tarefa das empresas inescrupulosas de lesar os seus trabalhadores, o relatório, sem nenhum pejo, trata de suprimir vários direitos, consagrados há décadas.
A título de ilustração, citam-se os seguintes:
I) Intervalo para alimentação, com duração mínima de uma hora e máxima de duas, nos termos do Art. 71; consoante a Súmula N. 437, do TST, se este intervalo não for concedido integralmente, a empresa ficará obrigada a pagá-lo, por inteiro, com acréscimo de 50%; o relatório altera a redação do § 4º deste Art., para limitar o pagamento do destacado intervalo ao tempo suprimido, rasgando-se a garantia da mencionada Súmula.
II) A indenização por dano moral, garantida pelo Art. 5º, inciso X, da CF, e 187 e 927 do Código Civil (CC), que, em conformidade com a jurisprudência do TST, decorre do próprio fato (in re ipsa), ou seja, independe de provas para além do fato; é regulamentado, pelo relatório, nos Arts. 223-A a 223-G da CLT, limitando-se a sua concessão, pela Justiça do Trabalho, à provas subjetivas, insuscetíveis de demonstrações. Importa dizer: não haverá indenização por dano moral.
III) A chamada pejotização (contratação fraudulenta de trabalhadores por meio de suposta pessoa jurídica) é validada pelo Art. 442-B da CLT.
IV) A proteção aos direitos — se é que restará alguma — não se aplica aos empregados portadores de diplomas de nível superior, com salário igual a duas vezes o teto de benefício do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), hoje, de R$ 5.531,31.
V) O contrato de trabalho intermitente, previsto, no relatório, no Art. 452-A da CLT, não assegura aos trabalhadores a ele submetidos, aviso prévio e multa de 40% do FGTS.
VI) A empresa fica autorizada pelo Art. 456-A a usar a imagem do trabalhador, sem qualquer autorização e sem nenhuma contraprestação financeira.
VII) A rescisão de contrato com duração superior a um ano não será mais homologada pelo respectivo sindicato; a sua assinatura se dará na própria empresa, sem nenhuma assistência. Além disso, não haverá mais a garantia de que as verbas rescisórias sejam calculadas com base maior remuneração e o prazo para o seu pagamento, sem multa, será de dez dias após a extinção do contrato; hoje, quando há cumprimento de aviso prévio, o prazo é o primeiro dia útil após o seu vencimento.
VIII) A quitação, passada perante a empresa, em caso de adesão a plano de demissão voluntária (PDV), previsto em instrumento normativo, impedirá o trabalhador de recorrer à Justiça do Trabalho, isto é, plena e irrevogável, violando o Art. 5º, inciso XXXV, da CF.
IX) Os representantes sindicais poderão ser dispensados por motivo disciplinar, técnico, econômico ou financeiro, conforme o § 3º do Art. 510-C da CLR, criado pelo relatório.
X) Os acordos coletivos, não importando o prejuízo que representam aos trabalhadores a eles submetidos, prevalecerão sobre as convenções coletivas, ainda que estas sejam mais vantajosas, invertendo a ordem do Art. 620 da CLT, com a redação atual, que determina exatamente o oposto.
XI) O relatório altera o Art. 4-A da Lei N. 6019/1974 — com a redação dada pela Lei N.13429/2017 —, para não deixar dúvida quanto à extensão da terceirização à atividade-fim, estabelecendo: “Considera-se prestação de serviços a terceiros a transferência feita pela contratante da execução de qualquer de suas atividades, inclusive sua atividade principal, à empresa prestadora de serviços que possua capacidade econômica compatível com a sua execução”.
Não satisfeito com o esvaziamento das funções sindicais, o relatório sob contestação cuida de estrangular as organizações sindicais ao converter a contribuição sindical anual — descontada no mês de março de cada ano — em voluntária, mediante expressa e solene autorização de cada empregado.
Como o STF, por meio da Súmula Vinculante N. 40, já limitou a contribuição confederativa aos associados e, no Recurso Extraordinário (RE) N. 760931, a taxa negocial ou assistencial, se vier a prevalecer essa proposta de contribuição sindical voluntária, não haverá mais categoria profissional nem financiamento sindical.
Ressalta-se que a limitação da contribuição sindical a ato de vontade, solene e expresso de cada trabalhador, não passa pelo crivo do Art. 8º, inciso IV, da CF, que a estende a todos os integrantes da categoria.
Este, em síntese, é o relatório do deputado federal Rogério Marinho. Após lê-lo, cabe perguntar: se ele for convertido em lei, ainda haverá Direito do Trabalho? A resposta é desenganadora: não; somente remanescerá direito do capital.
*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee