Mudança no conteúdo é uma entre várias alterações no Ensino Médio após Medida Provisória anunciada pelo governo
O presidente Michel Temer e o ministro da Educação Mendonça Filho apresentaram na quinta-feira (22) a Medida Provisória (MP) com uma nova proposta de Ensino Médio. A MP alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Básica (LDB), de 1996, e suscitou a preocupação dos professores diante das mudanças na configuração curricular. Uma semana antes, o ministro já havia anunciado o modelo em linhas gerais e expôs que a urgência do governo está diretamente ligada aos resultados do Ensino Médio no Ideb. Agora, o texto confirma, entre outras mudanças, a instituição do ensino médio em tempo integral, com ampliação da carga horária de 800 para 1400 horas e a flexibilização do currículo, que passa a ser composto por menos áreas do conhecimento obrigatórias e por atividades de formação técnica e profissional à escolha do estudante.
A MP foi publicada em edição extra do Diário Oficial da União na sexta-feira (23) sem mudanças no conteúdo do texto e o MEC divulgou uma nota reafirmando que não prevê “corte de nenhuma disciplina”, reforçando a fala do Secretário de Educação Básica, Rossieli Soares da Silva, durante o anúncio da quinta-feira.
Para Daniel Cara, coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, apesar de citar o Plano Nacional de Educação (PNE) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a MP é totalmente dissonante das discussões atuais sobre o Ensino Médio. “Discorda dos debates da Conferência Nacional de Educação e das melhores pesquisas sobre essa etapa feitas aqui e no mundo, que dizem basicamente que uma reforma do ensino médio feita sem envolver alunos e professores tem enormes chances de dar errado”, afirma.
A pesquisadora Anna Helena Altenfelder, superintendente do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária, concorda. Para ela, nenhuma reforma educacional deve ser feita via Medida Provisória. “Causa estranhamento uma MP para isso, sem envolver a discussão de vários atores, principalmente porque sabemos que um plano de reformulação da educação é tão importante quanto sua implementação, que, se não for cuidadosa e não incluir todos, fica no papel”, analisa.
Desigualdade
Anna Helena explica que, observando o histórico de pesquisas do Cenpec, a flexibilização do currículo por si só pode ser uma ideia interessante, mas o cenário preocupa ao se pensar na garantia do direito à educação para todos, porque o novo currículo pode ser capaz de acirrar a desigualdade em um contexto de déficit de professores e precarização do ensino. Segundo Anna Helena, a reforma nos conteúdos no contexto atual pode colocar em xeque a equidade, ou seja, a oportunidade de estudantes com nível socioeconômico (NSE) mais baixo aprenderem em pé de igualdade com estudantes de NSE mais alto.
“A dúvida é se quem não teve oportunidade de aprender matemática, física e português, por falta de professores ou por superlotação das salas, por exemplo, terá as mesmas oportunidades de escolha de quem teve a possibilidade de aprender e também se os pequenos municípios, com uma ou duas escolas, terão condições de proporcionar esse percurso flexível”, questiona a superintendente do Cenpec. “Será uma escolha por aptidão e interesse ou será o que chamamos de uma ‘escolha forçada’, dada pelas circunstâncias e as condições sociais dos estudantes? Porque a realidade das redes não permite que todos os jovens tenham a mesma condição de escolher”, alerta.
Como solução para o problema do déficit de professores a MP propõe que docentes sem licenciatura de uma disciplina específica possam ser contratados para lecionar no Ensino Médio por terem “notório saber” de uma área de conhecimento.
Anna Helena acrescenta que uma pesquisa do Cenpec e uma auditoria recente feita pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo mostraram que a escola de tempo integral pode provocar desigualdade em relação às escolas vizinhas. “Porque a escola integral existe em um número muito reduzido e se torna uma unidade de excelência frequentada por quem tem melhor condição econômica, enquanto os estudantes que mais precisam não são contemplados e superlotam as escolas vizinhas de tempo regular”, explica.
Investimento
Em nota, o Cenpec também alertou para a falta de menção ao ensino médio noturno, frequentado por 1,9 milhão de estudantes, ou 23,6% do total de matrículas, de acordo com o Censo Escolar 2015.
Em relação ao investimento, Daniel Cara avalia que o texto “liberaliza demais a distribuição de recursos para a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio Integral”. A transferência de recursos financeiros prevista para esse fim “será efetivada automaticamente pelo FNDE, dispensada a celebração de convênio, acordo, contrato ou instrumento congênere, mediante depósitos em conta corrente específica”, diz o texto, em seu Artigo 9º. Cara considera este o ponto mais frágil da MP, porque na prática não será mais necessário editar convênios que hoje garantem a destinação de recursos para programas específicos, como formação de professores, educação indígena e educação especial.
Medida Provisória
Acatando um pedido do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), a Medida Provisória prevê que cada estado decidirá as atividades para compor a parte flexível do currículo. Enquanto os secretários estaduais de educação comemoram a “maior autonomia para os estados”, outras entidades, como a Campanha Nacional pelo Direito à Educação lamentam a edição da Medida Provisória. “Reformar editando uma MP, sem debater com escolas, pesquisadores, professores e estudantes, é característica de um governo impositivo como este, nada aberto ao diálogo”, diz Cara, lembrando que o debate com os atores diretamente envolvidos é reivindicado desde 2015 pelas ocupações das escolas por estudantes de ensino médio.
A partir de sua edição pelo presidente, a Medida Provisória tem força de lei por um prazo de 60 dias, enquanto Câmara e Senado analisam a proposta para decidir se ela permanece vigente. Caso se decida que não, a MP pode ser prorrogada por mais 60 dias para nova análise. Uma vez aprovada pelo Congresso, o presidente tem o poder de sancionar o texto ou de vetá-lo integral ou parcialmente caso discorde das mudanças ocorridas durante a tramitação.
O argumento do ministro Mendonça Filho é de que a reforma do Ensino Médio é urgente e o Projeto de Lei a esse respeito tramita desde 2013 sem avanços. No caso do PL, a tramitação passa por várias comissões antes da votação definitiva em plenário. O atual projeto (PL 6840/2013) é de autoria do deputado Reginaldo Lopes (PT-MG) e estava pronto para pauta no plenário, segundo a ficha de tramitação no site da Câmara dos Deputados.
Tempo integral X estreitamento
O Artigo 24 da MP institui que a carga horária mínima do Ensino Médio passe de 800 para 1400 horas – sendo 1200 delas, no máximo, destinadas a conteúdos obrigatórios. Isso significa que os estudantes passarão 7 horas por dia na escola. Nesse sentido, o texto cita como base o PNE, que tem como meta que ao menos 50% das escolas públicas tenham ensino integral até 2024. O problema, segundo Cara, é que não adianta fazer ensino integral sem resolver as limitações já existentes. “A flexibilização do currículo desassociada de pensar soluções pedagógicas, inclusive envolvendo tecnologia, valorização dos professores e redução do número de alunos por turma, tende a naufragar”, defende.
Durante o anúncio, o secretário da Educação Básica, Rossieli Soares da Silva, afirmou que tudo o que estiver na Base Nacional será contemplado e que não foi decretado o fim de nenhuma disciplina. No entanto, o texto deixa claro o enxugamento das áreas obrigatórias.
O ensino de Artes e Educação Física não é mais obrigatório no Ensino Médio, ou seja, deixam de existir como disciplinas. No caso da Educação Física, o texto diz explicitamente que ela “passa a ser componente obrigatório da educação infantil e do ensino fundamental, sendo sua prática facultativa ao aluno”
Além disso, o texto não menciona Filosofia e Sociologia como disciplinas que deixam de existir – e atualmente elas existem como tal -, mas faz alusão a essas áreas do conhecimento apenas no pacote “do contexto histórico, econômico, social, ambiental e cultural” que a parte diversificada do currículo deverá levar em conta, de acordo com a definição de cada sistema de ensino.
Diz o inciso 5º do Artigo 36: “§ 5º A parte diversificada dos currículos de que trata o caput do art. 26, definida em cada sistema de ensino, deverá estar integrada à Base Nacional Comum Curricular e ser articulada a partir do contexto histórico, econômico, social, ambiental e cultural.”
“Pedagogicamente falando, a MP preconiza uma formação mais utilitária em detrimento de uma educação plena do ser humano”, analisa Daniel Cara. Além de Filosofia, Sociologia, Artes e Educação Física, a Língua Espanhola também deixa de ser obrigatória, podendo existir “em caráter optativo” e “de acordo com a disponibilidade de oferta, locais e horários definidos pelos sistemas de ensino”.
Com até 1.200 horas destinadas às quatro áreas prioritárias ao documento – linguagens, matemática, ciências da natureza e ciências humanas -, resta o mínimo de 200 horas para a parte diversificada do currículo, chamada de “itinerários formativos específicos”, que deverá dialogar com a BNCC, prevista pelo ministro para “meados de 2017”, quando contará atraso de aproximadamente um ano em relação ao previsto inicialmente.
CartaCapital